sábado, 30 de abril de 2011

10 - Da Itália ao Brasil - "DIARIO DE UM SONHADOR"



“Anotações de Um Sonhador”
Do Diário do Imigrante Italiano
 Giuseppe Casteluber

1887 - Valsugana – Tirol Austríaco

Estou com sessenta anos. Parece um pouco tarde para começar um diário, mas está para acontecer à coisa mais emocionante, instigante, diferente da minha vida. E eu preciso ir anotando para não me esquecer de nada e para mostrar aos meus filhos e netos quando conversar com eles sobre suas raízes.
Aqui, no Tirol, somente os nobres podem ser donos da terra. Nós podemos apenas trabalhar nela, ganhar nosso sustento através dela e isso cria fortes laços de amor e ódio com ela. Mas eu gostaria que ela fosse minha e eu pudesse ter essa relação muito fortalecida pela troca que teríamos pela vida afora: eu, com meus cuidados e ela, com seus frutos.

Meus amigos me contaram que num país muito distante na América, o Brasil, isso é possível aos camponeses que se empenham realmente. Muitos patrícios já estão lá e as cartas que chegam contam que está havendo um movimento enorme para extinguir a escravidão, libertando os escravos, que são negros comprados, aprisionados na África. Então, eles vão precisar de gente para a lavoura, o que é um bom começo. Trabalho não me assusta!

1888

Meus planos de ir para o Brasil estão tomando forma. Acho que o mais complicado eu já fiz, pois através de muita conversa, convenci minha esposa Catarina (agora com 58 anos), que ficou fascinada com o fato de que lá não há neve e o sol brilha sempre. Imagine não precisar ficar seis meses entocados dentro de casa, com um metro de neve nas ruas.

Sem contar que é preciso trabalhar duramente, antes do inverno, para estocar o necessário para esse período difícil. Trabalhar na terra o ano todo e ter sempre tudo à mão é uma alternativa maravilhosa!

Meus filhos: Giuseppe
(27 anos); Roberto (25); Pietro (23); Maria (21); Rosa (19); Carlotta (17); Luisa (15); Beniamino (13) e Otilia (11) estão mais ou menos entusiasmados. Para eles é uma aventura rocambolesca. Os meninos também querem sua terra, mas as meninas têm medo. Acalorados debates todas as noites ao pé do fogo! Acho que a presença do sol brilhando todos os dias é o principal argumento para convencer as meninas, já que a mãe só fala nisso.

Outubro de 1888

Tudo arranjado para a grande viagem! Como a Áustria não permite a emigração, vamos via Itália. De Levico a Trento em diligência com quatro cavalos e de Trento a Gênova, de trem. Lá, após ultimar os detalhes, embarcaremos no navio que nos levará a Santos.

Hoje, meus vizinhos, parentes e amigos estão nos oferecendo uma festa de despedida. Muita comida, muito vinho, muita música, muita dança, muitos bilhetinhos, muitas lágrimas, muitos votos de sucesso. Estou feliz, mas um pouco apreensivo. Quando servi na Marinha austríaca vi muitos companheiros enjoando no navio. Espero que não aconteça com minha família. Eu não vou ter esse problema porque já sou calejado.

Começo de Novembro de 1888·

Pela manhã, antes de nossa saída, encontrou na porta de casa sobre uma pedra, um broche com a palavra ADEUS e um raminho de edelweiss. Sem bilhete, sem nome, sem nada. Mas, a mensagem era clara e deve ser para a Luiza, a mais namoradeira das minhas filhas. Ela não confessou, porém guardou o presente.

Lá vamos nós! Que Deus nos acompanhe! O navio chama-se “Fortunata”. Ora, isso é uma mensagem de otimismo. Devo confessar, porém, que lá no fundo do meu coração sento um aperto ao deixar o país onde nasci. Mas, devo lembrar que a terra é sempre mãe e nos alimenta onde quer que estejamos.

Que mar imenso temos que atravessar! E que vergonha estou passando: preso ao beliche, enjoando, enquanto todos se divertem no convés. Ouço as vozes e os cantos. José toca seu rabecão e Pedro, a harmônica. Os austríacos e os italianos cantam desafios:

Evviva Giuseppe Primo che è sempre stato un uomo d'onore!
Evviva Vittorio e Garibaldi che sono stati sempre vincitori!

Sinto que a concretização do meu sonho se avizinha.

Finais de Novembro de 1888

Chegam a Santos, cansados da viagem, mas alegres e esperançosos. Aproximam-se do navio pequenos barcos, cheios de jovens negros vendendo frutas. Pela primeira vez, vejo um negro sem ser em pintura. Eles são bonitos, ágeis e fortes; sua pele reluz ao sol. Como sempre, as mulheres choram de medo, mas as crianças riem e se comunicam com eles.

Vamos tomar o trem da Imigração e ir para São Paulo. Ficaremos abrigados na Hospedaria dos Imigrantes até conseguirmos contrato para ir trabalhar numa fazenda. Ao chegar à Hospedaria, não tivemos nem necessidade de nos acomodar porque fomos contratados imediatamente.

Também, a minha família era, sem dúvida, a mais interessante: onze pessoas fortes, rosadas, saudáveis, praticamente todos adultos, ou seja, “braços úteis”. Aceitei logo o contrato para uma fazenda, entre Valinhos e Campinas, porque o Cavalheiro do Império, que nos abordou falando italiano, prometeu carroças para o transporte, boa casa e farta refeição, de acordo com nossos costumes.

Não foi bem assim: as carroças (carruagens na Áustria) eram carros de boi, a casa era um barracão e a comida... Meu Deus era intragável!

Roberto me avisa que há muitas cuias com queijo ralado. Bom, com isso dá para disfarçar o gosto da comida. Mas, o queijo parecia uma areia estranha. Perguntei o que era e uma negra me explicou que era farinha de mandioca. Bem diferente do esperado, mas não vou, de maneira alguma, desistir! Vamos enfrentar tudo!

Um negro, o Zeferino, fala um pouco o italiano e tem nos ajudado muito: ensinou a tirar “bicho de pé”, curar berne e agora é nosso consultor nos hábitos locais, sempre recebidos com muita festa por nós.

Trabalhamos exaustivamente numa cultura que pouco conhecemos, a do café, e somente receberemos na colheita. Compramos tudo no armazém. Uma coisa precisa registrar: esta terra é tão boa que é possível colocá-la no prato e comê-la.

Março de 1889

Hoje é um dia triste para mim! Vou contar o que aconteceu: após um período de trabalho duro em que toda a família se empenhou, sempre com o sentido nas promessas que fiz a todos, fui receber o que me era devido. O Cavalheiro me informou que eu nada tinha a receber e que estava devendo, e muito, pelas retiradas que fiz no armazém. Fiquei estupefato! Mas entendi: éramos os novos escravos.

Foi muito difícil explicar isso à família, mas, ninguém vai sufocar o meu sonho. Vou falar com o patrão, prometer pagar a dívida depois e procurar outro lugar para trabalhar, pois na missa do domingo, ouvi dizer que a situação em outras fazendas é bem melhor. Quantas promessas vãs aquele cavalheiro me fez!

Minha proposta de pagar a dívida depois não foi nem considerada. Estou proibido de deixar a fazenda e sob ameaça de morte.

Maio de 1889

As promessas que fiz aos meus para alcançar meu sonho exigem de mim uma atitude positiva, embora perigosa. Vou arriscar mais uma vez e fugir desta fazenda. Soube pelo Zeferino (nosso amigo) que, no dia 13 de maio, os negros vão comemorar o primeiro aniversário da Abolição com um batuque que vai se prolongar noite adentro. Meus patrícios já nos arrumaram outra fazenda. Estamos nos preparando para a fuga no maior segredo.


13 de maio de 1889

Por mais que guardássemos segredo, alguns negros perceberam nossos arranjos e deram o alarme. Zeferino salvou a situação dizendo que os “intalianos” estavam armados até os dentes e que ele não ia se suicidar ficando no caminho deles.
Armas? Que nada... Só tínhamos alguns canivetes. E, assim, fugimos...

Junho de
1889

Embora mal acomodados na tulha, as condições nesta fazenda são mais humanas. As meninas podem recolher tudo o que sobrar no chão após a colheita. Mas, temos saudade de uma boa carne porque estamos nos alimentandos com milho, leite e alguns vegetais que as mulheres cultivam.

Setembro  de 1889

Não é que hoje apareceu perdido um porco gordo, bonito, luzidio. Todos ficaram a imaginar deliciosas costeletas, lingüiças, chouriço, banha, defumados, etc, etc. Mas, não é assim que costumamos agir. Calma! É preciso saber de onde ele veio, a quem pertence.
            
Fui ao patrão e ele acha que o porco se desgarrou de algum comboio que ia para São Paulo e que, se ninguém o reclamar até amanhã, posso ficar com ele, sem preocupações de ordem moral. Vou fazer isso, mas esta noite vou dormir com o porco em um lugar fechado para que não escape. Afinal, é o primeiro agrado que posso fazer a esta família que tanto sacrifício faz para que eu realize o meu sonho.

Pela manhã, o patrão declarou: O porco é seu! Ainda assim, resolvi esperar até a missa do domingo porque lá encontro muita gente e se se apresentar algum dono, paciência... Meus filhos não gostaram nem um pouco da minha resolução e o coitado do porco teve que suportar olhares extremamente gulosos durante toda a semana. Finalmente conseguimos sair de uma dieta extremamente pobre. Foi uma festa! Um verdadeiro presente do céu!

1892
Hoje recebi uma proposta do irmão do meu patrão: plantar dois mil pés de café, a duzentos réis o pé e, se no terceiro ano os cafeeiros produzirem, a safra será minha.

Meu Deus! A concretização do meu sonho está à vista! Basta que eu trabalhe direito e com ânimo e vou conseguir. Meus filhos jamais se arrependerão de ter vindo para esta terra.
 
1893
Construímos uma cabana no meio da mata e vamos iniciar a derrubada. O trabalho é difícil, duro, mas todos estão animados. Meus filhos mais velhos já estão querendo casar.

1896

Formamos o cafezal e a safra foi muito boa.
Vou entregá-la ao patrão para ser vendida. Hoje, meu patrão me deu uma lição que preciso passar aos meus filhos.

Ele vendeu a safra e quando cobrei o cumprimento do contrato feito sob palavra, ele me passou um sermão:

“De hoje em diante, faça contratos por escrito e com testemunhas probas ou o senhor terá dissabores”.

Disse que me pagava porque era honesto. Nunca dei valor a um papel, mas é melhor seguir as regras daqui. Com o dinheiro apurado, vou comprar sítios para mim e para meus filhos já casados.

1900
Estou trabalhando na minha terra. Que satisfação! Voltei finalmente à cultura das uvas e a fazer vinho, mas também tenho tudo no sítio para nosso uso. Só não consegui pêssegos bonitos como na Europa.

Tomei todos os cuidados, mas eles aparecem bichados, sem que eu consiga impedir.

Meu vinho está ficando conhecido.

Embora com produção pequena, forneço para pessoas importantes de São Paulo.

 
1904
 Meus filhos estão com idéias diferentes. Falaram tanto, tanto, que para ter sossego, resolvi vender a minha safra de uvas deste ano, no pé, para comerciantes do mercado da capital. Dizem que vou ter menos trabalho e lucrar mais. Dentro de algumas semanas, mandarão homens para a colheita e o transporte. Vamos ver no que vai dar! 

Hoje, após passar por uma situação horrível, estou me sentindo muito bem. Fui acompanhar o serviço do pessoal do mercado e presenciei uma cena dantesca. Eles arrancavam a minha uva de qualquer jeito, jogavam em caixas de madeira e martelavam as tampas brutalmente, machucando aqueles lindos frutos.

Aguentei aquilo por muito pouco tempo, embora meus filhos tentassem me segurar, dizendo que elas não eram mais nossas, que já estavam vendidas e pagas.

Expulsei a todos, devolvi o dinheiro. Chamaram-me de louco, mas estou satisfeito. Que Deus me perdoe à ousadia, mas a minha indignação deve ter sido parecida com a de Jesus ao expulsar os vendilhões do templo. Na minha frente, ninguém vai desrespeitar os frutos desta terra generosa. Lucro não é, definitivamente, o mais importante.
1909
Estou aqui sentado na varanda do meu sítio, vendo meus netos brincar; o jardim, que a minha Catarina cuida com tanto amor, todo florido e, ao longe, as parreiras que plantei.

Meu neto João, de cabelo vermelho e gênio idem, é o mais parecido comigo. Nada o impede de ir atrás dos seus sonhos, mas também nada o faz agir em desacordo com os seus princípios.

Meus dois pés sentem este chão que é meu e que pagou com juros todo o sacrifício que fizemos. As uvas estão amadurecendo, visito-as todas as manhãs, converso com elas e mal posso esperar o vinho que elas vão me dar.

BENDITA TERRA!  BENDITO BRASIL!


"Feliz aquele que se recorda com prazer dos seus antepassados, que conversa com estranhos sobre eles, suas ações e sua grandeza e que sente uma satisfação secreta por se ver como o último elo de uma bela corrente".

         Johann Wolfgang von Goethe *(1749~1832)

----------------------------------------

(Continuação)



Antonio Severini, Agosto 2007



 Saúde, Paz e Felicidades a Todos Nós

Um comentário:

  1. Antonio,
    Este testemunho deste imigrante relata a saga vivida por eles quando aportaram no Brasil, com poucos pertences mais muitas esperanças.
    Nosso destino é o resultado de nossas escolhas e vontade, não devemos nunca parar de sonhar pois o sonho muitas vezes se tornam realidade. Aquele que nunca ousou a seguir seus instintos está fadado a ser uma vitma do tempo que passou sem que ele tenha vivido realmente.

    ResponderExcluir