sábado, 30 de abril de 2011

12 - Da Itália ao Brasil - Borgia, Calabria (Itália) - o Berço dos Severini's

CONTINUAÇÃO:

DA ITÁLIA AO BRASIL -  Borgia, Calabria (Itália) - O Berço dos Severini's

Apesar do enorme número de italianos que vieram para o Brasil no decorrer de meio século algo em torno de dois milhões e meio, nunca houve de fato um bem-elaborado acordo comercial entre Itália e Brasil, como se estabeleceu com a Alemanha, por exemplo, caso em que foram estipulados tratamento diferenciado para os produtos comercializados entre ambos os países, quotas preferenciais, reserva de mercado etc.

Fabrica de Macarrão (Pastaio)
Nunca houve nada desse tipo entre a Itália e o Brasil, o que não deixa de estimular um questionamento dessa dimensão sombria da imigração, esse descuido recíproco que acabava relegando os imigrantes à própria sorte e às forças atuantes no mercado de trabalho.




 

Retomando: o modo de produção capitalista começa a penetrar no campo, destrói relações primárias, relações diretas, desestrutura a vida agrária. Os habitantes das áreas mais afetadas por esse processo sentem-se expulsos por um pontapé e partem em busca de um lugar onde possam reproduzir, ou até mesmo reinventar a Itália.

Ignorando, no entanto, que sua partida facilitava processos que iam muito além de sua compreensão, como apontam estudos históricos mais recentes, aos quais aludimos de passagem (José de Souza Martins (2003, 1973, 1979a, 1979b), Constantino Ianni (1972), Chiara Vangelista (1991), João Batista Borges Pereira (1991)).

O sentimento que vem na bagagem seria expresso por algo como: "se amar minha pátria já não posso, pois tão pouco valor a mim confere, tentarei amar esta outra, e para esta trarei comigo a que me pertence, e que perdi".

Fruttivendolo
Ocorrerá, portanto, uma transferência de vínculo afetivo, no sentido clássico que a psicanálise conferiu a esse termo. Imagino o monólogo interior: "preciso de um solo, de uma plantação, uma vaca, um chiqueiro, árvores, uma igrejinha, uma festa de San Gennaro, uma polenta e uma tarantella, sem isso não sei viver! Se não é mais possível aqui, como sempre foi, que então seja em outro lugar, não importa onde".

O Brasil, dado o momento histórico que vivia, candidatava-se mas não era o único a tornar-se o depositário dessa transferência projetiva em razão de seus vácuos culturais e geográficos, de sua necessidade de mão-de-obra que aliasse ao trabalho a capacidade de consumir, e porque, servindo-nos de uma linguagem simplória, mas belamente metafórica, nesse colo havia lugar.

Ao desembarcarem, parte da confusa carga afetiva trazida pelos italianos era esse incômodo sentimento de amor estancado, suspenso no ar, posto em regime de suspeição.

Quando finalmente, depois de muita luta sangrenta, se generalizou um sentimento patriótico, tornou-se inviável exercê-lo coletivamente. Foi um sentimento erigido por todos, mas não era para todos. No Brasil, esse complexo afetivo será vivido de forma dupla e contraditória: nostalgia pela Itália perdida e raiva da Itália que expulsava.

Concomitantemente, os princípios de um amor pelo Brasil receptivo logo se fazem acompanhar por um ressentimento pelo país que obriga a trabalhar duro e passa desdenhosamente a denominar seus novos moradores de carcamanos. A duplicidade de sentimentos conseqüentemente localiza-se tanto numa ponta como na outra.

Comentar as condições da miséria na Itália rural é quase desnecessário, porque nessa matéria o Brasil era pródigo.

Eram misérias parecidas, lá e cá: habitações insalubres, pouco de tudo, um par de tamancos de madeira, uma roupa tecida e cosida em casa, carne boa poucas vezes por ano, trabalho de sol a sol, acomodações rústicas ao lado de animais, de porcos, a família toda apinhada, a saúde malcuidada... Não estamos evocando a vida dos escravos nas fazendas de café, mas uma população italiana vivendo sob condições ásperas, como aliás ocorria com a população rural européia em geral.

"Mais Macarrão"
Na última década do século XIX, o embarque no porto de Gênova era mais ou menos assim: as pessoas viajavam, mesmo em pleno inverno, vindas de longas distâncias, de carroça, a cavalo, a pé, como fosse possível.

Nas proximidades do velho porto, grupos que se formavam dormiam nas ruas até a hora do embarque, crianças sozinhas, mulheres grávidas ou com bebê no colo, idosos decididos a enfrentar a difícil aventura, com sacolas, um saco de grãos, algumas frutas secas, um queijo, um pão.


Seriam vinte dias no mínimo pela frente. Alguns dispunham de passagem paga pela Sociedade Protetora de Imigração Brasileira, alguns se arriscavam por conta própria, alguns poucos eram remediados e tinham posses.

O escritor Edmondo De Amicis, em 1889, embarcou no porto de Gênova e fez a viagem dos imigrantes, publicando logo a seguir um relato inteligente e informativo, que infelizmente não é conhecido por quase ninguém (De Amicis, 1889).

A distribuição dos imigrantes pelas três classes do navio reproduzia com exatidão sociológica a estrutura social italiana: a burguesia proprietária na primeira classe (essa viajava com interesses bem mais assegurados de sucesso, pois trazia capital para investir no Brasil), o estrato médio (artesãos, pequenos comerciantes, trabalhadores qualificados, quase já operários) na segunda, e o campesinato pobre na terceira.

A estrutura social italiana, atravessando intacta o Atlântico, instala-se no Brasil mantendo as mesmas diferenças de classe da origem.

Alguns tinham dinheiro, outros cultura, outros mais, habilidades e talentos especiais. Mas a grande maioria só sabia mesmo era pegar no pesado. Alguns logo acharão lugar nas cidades, outros irão para fazendas recém-abertas, ou mesmo para os descampados paulistas e gaúchos.

De Amicis era um grande observador, e vale a pena reproduzir algumas das observações que nos deixou, especialmente no que concerne à mentalidade dos imigrantes, discutindo no porão da terceira classe, como fazem os italianos até hoje sobre qualquer assunto que cair na roda: os monstros marinhos, o desaparecimento da Atlântida, os canibais negros da costa africana e o calor abrasador que haveria de derreter miolos assim que o Galileo chegasse ao Equador.

Menino de Napoli
E a mais interessante de todas as discussões, sobre a esfericidade ou não da Terra: a conclusão, a olhos vistos, era de que a Terra evidentemente era plana como um prato, pois se assim não fosse, depois de cruzado o Equador o vapor começaria a descer, contornando o globo como uma formiga ao redor de uma bola (ibidem, p.204-26).
E a preciosa frase de um camponês veneto, que em sua simplicidade resume as razões da imigração:

"Mi razono in sta maniera. Di peggio di come stavo non mi può capitare. Tutt'al più mi toccherà di patir la fame laggiù come la pativo a casa. Digghio ben? [...] Mi emigro per magnar" (ibidem, 290-1). Sim, meu amigo, você disse tudo


No Brasil, o regime escravista estava chegando ao fim. Repor mão-de-obra escrava, a partir de 1880, já não compensava mais. Em São Paulo havia três situações socioeconômicas e geográficas distintas.

A primeira corresponde ao Vale do Paraíba, a segunda ao Oeste paulista circunvizinho a Campinas, e a terceira é o chamado "Oeste novo", regiões de terra roxa abarcando a região de Ribeirão Preto a Casa Branca, em direção ao Oeste. A situação de trabalho era muito diferente nos três casos.

O Vale do Paraíba, rica região das tradicionais fazendas que utilizavam mão-de-obra escrava, produziu um ciclo pujante de prosperidade, como atestam nos núcleos antigos algumas magníficas mansões rurais que sob alguns aspectos evocam villas italianas nas cidades ou nas cercanias de Guaratinguetá, Taubaté, Areias e Bananal.

Ao final do Império, a região como um todo, e sua correspondente aristocracia agrária, elite política que deteve o poder econômico brasileiro, entrava em decadência, ao mesmo tempo que tomava corpo o movimento abolicionista, brilhantemente liderado pelas idéias e atitude desse grande brasileiro que foi Joaquim Nabuco.

Ostricaro – (Ostra)
O Oeste de São Paulo, em torno de Campinas, despontou na seqüência, mas já vinha produzindo café há algumas décadas, bem suprido de mão-de-obra escrava em constante reposição.

Após a proibição do tráfico negreiro (1850) e a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871), instaura-se como prática alternativa a comercialização interna de escravos entre diferentes estados do Brasil: os fazendeiros de Campinas, por exemplo, com sua mentalidade antiabolicionista, viam-se forçados a buscar mão-de-obra negra do Nordeste, provinda de engenhos decadentes, para suprirem seus projetos de expansão cafeeira.

No Oeste Novo, até então habitado por índios das etnias kaingang, terena e guarani, com suas vastidões cobertas de matas e um solo de cor vermelha — terra rossa (que acabou em português sendo denominada "terra roxa", um tipo de solo que se revelou fertilíssimo), é precisamente nessa área que uma nova mentalidade econômica toma corpo.

Os fazendeiros agora querem produzir café de um modo novo, assalariando um trabalhador mas jamais os negros, mesmo com a perspectiva de que logo seriam libertados da condição escrava , trabalhador esse capaz de consumir bens com seu salário. E, poderíamos dizer, branco, e não negro, por injunções de ordem simbólica, já que essa mentalidade fazendeira de vanguarda almejava a implantação de uma nova ordem sociopolítica e cultural.

Vendittore di Pasta
As primeiras experiências de assentamento de colonos europeus, alemães, suíços ou italianos vêm dos idos de 1840, por iniciativa de empreendedores como o comendador Vergueiro, por exemplo, sem que lhes faltasse certa aura romântica ou mesmo anarquista. Às vésperas da abolição da escravatura (1888), e um ano após o fim do Império e a proclamação da República (1889), surgem novos líderes políticos, defensores dessa nova ideologia, como o fazendeiro da região de Araras, Martinho Prado Jr., que passará ativamente a promover a imigração italiana, sagazmente percebendo nessa mudança os enormes dividendos econômicos e políticos (como de fato ocorreu, com sua família, nas décadas seguintes) que esse novo processo viria a proporcionar.

O que esses fazendeiros ilustrados (e muitos de fato estudaram na Europa) acabaram por promover foi uma guinada modernizadora (muito a seu favor) na economia brasileira, plantando a semente do mercado interno. As relações sociais e o modo de produção agrícola irão se alterar, mas os excluídos do processo serão novamente os escravos e seus descendentes, a quem não foi oferecido trabalho assalariado algum.

Essa é uma das marcas mais cruéis da sombra social brasileira, cujos efeitos discriminatórios e marginalizadores de milhões de afro-descendentes fazem-se presentes até a atualidade, engendrando uma iniqüidade que até hoje se tem revelado irremissível.

A chegada dos imigrantes italianos impregnou-se das forças geradas por energias renovadoras; mas a saída dos escravos das fazendas, e sua dispersão anômica pelo interior como um bando de desprezados da história, era pautada pela energia que rege os estados terminais.

Os italianos desprezados pela Itália acharam uma nova pátria no Brasil, mas os negros finalmente libertos da escravidão não acharam pátria em lugar nenhum. Essa foi a sincronicidade histórica ocorrida entre os processos sociais dos dois países: evidentemente não são causadores um do outro, mas um "resolve" o outro.

Pizzaiolo
A compilação de tabelas de entrada de imigrantes revela uma curva ascendente a partir de 1870 até o fim do século, sendo 1895 o ano de pico (Alvim, 1986).

Os avós de muitos brasileiros de minha faixa etária embarcaram no porto de Gênova (ou de Nápoles, em menor número) e desembarcaram em Santos alguns anos depois, os viajantes que viajavam com o bilhete pago pelo governo de São Paulo na chamada "imigração subvencionada"



Desembarcavam em Santos, tomavam um trem especial, fechado, e desembarcavam na estação da Hospedaria dos Imigrantes construída pelo governo paulista em 1888 para esse fim, na Rua Visconde de Paranaíba, Brás — que logo se tornaria um verdadeiro bairro italiano na capital paulista.

Em seu alentado Emigrazione Italiana nell'America del Sud, o pesquisador italiano Antonio Franceschini descreve — a partir de fontes oficiais, obtidas nos consulados — como era esse percurso do imigrante recém-chegado:
Apenas desembarcados, os imigrantes são recolhidos na Hospedaria dos Imigrantes, grandes alojamentos divididos em cubículos e grandes dormitórios coletivos, capazes de abrigar por vezes setecentas pessoas, onde se amontoam centenas e milhares de famílias de colonos.

Os dormitórios com bancos servem de refeitório, aqueles com esteiras diretamente sobre o solo (não imune de parasitas) servem de dormitório.
Geralmente o imigrante pode solicitar à autoridade brasileira ser colocado como meeiro ou diarista junto às feitorias, ditas fazendas, para cultivar açúcar ou café; ou pode solicitar um lote de terreno para cultivar.

Os imigrantes que pediram para serem colocados como meeiros ou assalariados nos cafezais são reagrupados e apresentados aos fazendeiros admitidos na hospedaria.

Estes selecionam as famílias ou colonos de aparência mais robusta, fazem as ofertas, apresentam as condições (ajustes) e a paga, conforme o gênero de trabalho, pagamento cujo valor o imigrante mal conhece, embora o contrato venha traduzido verbalmente pelo intérprete (nem sempre confiável), e freqüentemente fazem também a apresentação do pão que será distribuído nas respectivas fazendas.

Venditrice di Pannocchie (Milho na Espiga)
O colono negocia com o fazendeiro, sem garantia alguma de honestidade e solvibilidade de quem lhe oferece trabalho, e se alista sob o comando deste: apenas colocado, cessa qualquer obrigação por parte do Estado. (Franeschini, 1908, p.626

É a esse processo que se refere Constantino Ianni (1972), como tráfico de mercadoria. O que assustava os recém-chegados não era o trabalho que os esperava — miséria por miséria, era trabalhar duro lá ou cá, mas aqui uma situação nova e doída se anunciava: o isolamento.

Os camponeses de qualquer parte do mundo são gregários e solidários; imaginemos agora essas fazendas novas, na imensidão de um território ermo arrancado a tribos indígenas dizimadas a fogo de carabina, começando a ser cortado por linhas férreas. Os imigrantes se assustavam com a tarefa a muitos imposta de derrubar floresta e arar a terra para plantar café, trabalho rude até então reservado a escravos.

Algumas cartas de imigrantes (de 1876 a 1902) recolhidas por Emílio Franzina (1994, p.135), o maior historiador do Vêneto, em seu admirável Merica! Merica! (em que analisa a correspondência de imigrantes vênetos e friulanos na América Latina), comprovam essa enorme decepção dos italianos aqui aportados. Assim escreve, por exemplo, o outrora artesão de Treviso, Sante Paparoto, que foi parar em Guabirobas, distante duzentos quilômetros da cidade de São Paulo, no dia 6 de janeiro de 1889, à sua "Cara Molglie":

Dopo il longo e borascoso mare trascorso arivamo all'America dove si credeva trovare le delizie della tera cio è lavorare poco e guadagnare molto, ma invece non è cosí, al contrario si lavora molto e si guadagna poco e si magna anche male perche di cibi non ano sustanza como queli di Litalgia.

Qui ove ora io mi ritrovo piú superfulo è il chafè che bisogna alsarsi a prima chespunta il giorno per recharsi al travalio e si racolie alla sera a note avanzata cosí e di metodo braselero, poi al lavore che siamo veniamo tormentati da molti inseti provenienti dai boschi vicini.

Venditore di Zeppole
Onde antes não havia nada, só restos de um passado indígena que a memória coletiva não faria esforço algum para reter como elemento fundamental para um dia se compreenderem os trânsitos da alma brasileira, pequenos agrupamentos foram-se formando.

Mas padre não havia, nem festa, nem cemitério; não havia ainda compadrio, vizinhança num vilarejo ao qual se pudesse chegar a pé.

O isolamento era coisa dos Trópicos.

Muitos não aguentaram, largaram tudo e voltaram para a Itália. Mulheres grávidas sofreram surtos psicóticos, desprovidas que estavam de amparo grupal como sua cultura provia. Quando contratos de trabalho assinados eram rompidos, o desertor chegava a ser perseguido e trazido de volta ao eito, como se fosse um trabalhador servil.

Os que escapavam para as cidades mais próximas iam vender jornal na rua, comprar garrafas velhas, vender macarrão, qualquer coisa, para fugir do isolamento no campo desabitado.

Outros tiveram destino diverso, adaptaram-se à vida nas fazendas, construíram fortunas para os proprietários e um pequeno pecúlio para si mesmos. Parte de seus descendentes está por lá até hoje, como pequenos sitiantes em extinção ou moradores bem-sucedidos nas várias cidades cujas listas telefônicas são pródigas em sobrenomes italianos.

Na cidade de São Paulo, os italianos foram a grande força de trabalho que fez funcionarem as máquinas inglesas que deram origem ao nosso impressionante processo de industrialização. A partir de 1890, cinco bairros de operários italianos (os "5 Bês") foram-se formando: Brás, Belém, Barra Funda, Bexiga e Bom Retiro (que anos depois se tornou um bairro judeu).

Vendedor Ambulante
Alguns viajantes estrangeiros comentavam que São Paulo mais parecia uma cidade italiana, com jornais nessa língua, casas comerciais típicas, agremiações. Artesãos de talento construíam e decoravam as mansões que esses novos fazendeiros, agora milionários, levantavam na Avenida Paulista; ou o Teatro São José, o Teatro Municipal, o edifício Martinelli.

Foram aparecendo os cantores de ópera, os músicos de orquestra, os pintores, escultores, os donos de restaurante... e os primeiros empreendedores arrojados e visionários.

A aristocracia agrária descapitalizada acabava superando sua superioridade defensiva para render-se, por meio de interessantes uniões matrimoniais, ao sucesso dos carcamanos de pouco tempo atrás, agora fundadores de hospitais ou de impérios industriais. Assim misturou-se o nobre sangue das estirpes paulistanas a sobrenomes como Crespi, Morganti, Pignatari e Matarazzo. -7, apud Franzina, 1994, p.136-7)

E no campo, pouco a pouco, foi ocorrendo um tipo de assimilação social tipicamente brasileira e distinta da americana, no sentido de que entre nós os imigrantes de qualquer origem não tinham que pagar o preço de ocultar ou abandonar sua cultura em troca de um lugar na sociedade. Dessa matriz resulta o riquíssimo processo de fertilização cruzada e sincretismo que sempre pautou a expansão da alma e da psicologia brasileira.

Mas não devemos deixar de lado, como necessário contraponto, a lembrança de que o imigrante italiano empunhou, no início, o cabo da enxada deixada pelo escravo. O secular sofrimento da alma negra no Brasil não desembocou em redenção alguma. Essa dor sem nome ainda impregna a camada mais profunda da alma brasileira.

Após a abolição da escravatura e o preenchimento dos novos postos de trabalho com mão-de-obra importada, a população negra, deserdada mais do que liberta, sem trabalho, sem um plano de governo que a contemplasse, não terá outro destino do que o de perambular pelas estradas e periferias pobres das cidades em busca de chances mínimas de sobrevivência, e de adaptação social nos estratos inferiores da estrutura social (cf. Costa, 1966; Karasch, 2000).

Tavernaro – Pasta e Vinho     
Aquele que deixa de ser escravo não chega a ser cidadão.

Esse é o dramático paradoxo dessa história toda: o imigrante italiano merecidamente acabou recebendo um reconhecimento pela enorme energia criativa que aportou à sociedade que o recebeu, mas as populações indígenas e africanas, as primeiras a trabalhar e criar alma neste país, assim como suas fusões de tão variadas formas, foram todas, lembrando uma expressão inesquecível de Karl Marx, jogadas na lata de lixo da história.

Sob o rígido controle da censura austríaca, a metáfora histórica prestava-se perfeitamente para retratar o estado em que se encontrava a população italiana, respeitadas as amplificadas licenças poéticas.

O lamento de Jeremias, ou do salmista, equipara-se ao de Jó, tal a intensidade de sua dor por não terem sido ouvidas suas visões proféticas sobre os desvios de conduta dos hebreus e o terrível castigo que Javé impiedosamente lhes infligiria, permitindo que as colunas do templo fossem derrubadas e a cidade arrasada e conquistada pelos exércitos caldeus de Nabucodonosor (figura substituta para o arquiduque da Áustria).

Ostricaro – (Ostra) 2
Os hebreus, desterrados, trabalhariam como escravos por setenta anos. A evocação inicial ao vôo do pensamento nas asas douradas da imaginação é a proposta política de resistência ao status quo, de não-aceitação da realidade atual, remetendo a outra, no momento perdida, em que a terra natal assegurava uma vida digna, autônoma e prazerosa.

O apogeu é atingido no dramático e belíssimo verso da segunda estrofe, "Oh mia patria sì bella e perduta!", cuja mera evocação provoca uma lembrança cara, porém fatal. A harpa da inspiração emudeceu.

Os italianos precisavam de uma memória do que eram e do que um dia foram, para que as forças do peito se reacendessem. Para mudar o destino, ou se possível não fosse, para ao menos sofrer com dignidade.

E aí, nessa associação livre de imagens bíblicas, infiltra-se, como convém ao tema, uma pequena profecia: muitos perderão de fato a terra amada não para os invasores, que afinal serão vencidos e expulsos, mas porque quase setenta anos depois começarão a emigrar.

Pescivendolo – Vendedor de Peixe 
Os italianos edificaram no decorrer dos séculos uma cultura da beleza.

A feiúra e a desonra da miséria, em especial, lhes eram insuportáveis.

Uma civilização que atingiu o apogeu de um momento sublime como foi o Renascimento não suporta conviver com a humilhação da fome e da desorganização social, doenças estruturais que ferem de modo doloroso os alicerces fundados na adoração à estética de Vênus.

Nos momentos de desespero cívico ou pessoal, sempre foi a música o agente portador do consolo e do retorno à dignidade. As cabeças se erguiam novamente, o que nunca deixou de ter desdobramentos políticos. A música, como a de Verdi, que exaltava a pátria, arregimentava multidões, da mesma forma que o hino da Internacional Socialista ou a Bandiera Rossa comunista.

Mesmo a canção melodramática, numa certa conjuntura, pode tornar-se política. A meu ver, a cultura e a alma italiana têm como substância de apoio a emoção.

Sapateiro - Ciabattino
Costuma-se dizer, aceitando-se por óbvios todos os riscos do esquematismo, que a civilização alemã excedeu no pensamento filosófico; a inglesa, no pragmatismo tecnológico; e a vizinha civilização francesa realizou as grandes mudanças revolucionárias da história moderna.

Criar, nomear, diferenciar, controlar, desreprimir, sublimar, elevar e tratar de emoções não é tarefa para principiantes, como logo descobriu a prática psicanalítica ao tentar entender a histeria no final do século XIX.

É difícil trabalhar com emoção, quando essa se sobrepõe a princípios ou regras rígidas de conduta — como é mais comum entre os povos protestantes.

Os italianos às vezes acertam em cheio, quando a tornam sublime e a transformam em arte, em gosto pela vida. Outras vezes erram feio, ao se fixarem em subprodutos como a emocionalidade descontrolada ou sem propósito.

A extrema sensibilidade à flor da pele, as lágrimas que brotam por quase nada, as paixões levadas ao paroxismo são na verdade antídotos de Logos, embargando a voz, turvando a clareza do pensamento e da palavra, sabotando projetos e decisões racionais.

E esse complexo emocional mais aparentado a um Eros por vezes infantilizado do que a um Logos exercido segundo suas leis peculiares revela uma certa afinidade eletiva com a alma brasileira. Talvez não deixe esta de ser uma razão que explique esse amálgama que o tempo foi cimentando entre esses pedaços de almas transmigradas de tantos diversos nascedouros.


Sapateiro - Ciabattino (2)


Se no Brasil o sentimentalismo lamentavelmente não evolui à condição de compaixão diante da iniquidade há séculos perpetrada contra os despossuídos.

A emocionalidade dramática italiana gerou a figura popularesca da matrona sempre contrariada, que de tanto enaltecer a dureza de sua vida acaba se transformando em monumento da dor,  implacável, que com suas críticas e julgamentos sem apelação anula e emudece as filhas e com os filhos.

(Continuação)...
         
                                        -------------------------------

Antonio Severini, Agosto 2007






Saúde, Paz e Felicidades a Todos Nós


Nenhum comentário:

Postar um comentário